Projeto Novas Histórias reconstrói a vida de custodiadas no sistema penal do Pará
Iniciativa educacional promove a ressocialização após o cárcere

O primeiro impacto para quem entra o sistema carcerário é a sensação de que tudo chegou ao fim. No Pará, esse momento pode significar a chance de um recomeço para quem se vê sem esperanças. É isso que o projeto “Novas Histórias” está promovendo nos últimos quatro anos: um novo caminho para mulheres mães que abraçam a educação como porta para a mudança de vida. Dez custodiadas estão no programa, atualmente.
Desenvolvido pelo grupo Ser Educacional, em parceria com a Secretaria do Estado de Administração Penitenciária (Seap), o projeto oferta 10 bolsas de estudo na modalidade Educação a Distância em diversos cursos. A iniciativa tem a parceria da Universidade da Amazônia (Unama) que disponibiliza outras quatro bolsas integrais, o que eleva o total de bolsas para 14. Todas as mulheres participantes, até então, são internas da Unidade de Custódia e Reinserção Feminina (UCRF) de Ananindeua.
A iniciativa beneficia mulheres que são mães e têm baixo poder aquisitivo, explica Patrícia Sales, coordenadora da Educação Prisional (CEP), Patrícia Sales, ligada à Diretoria de Reinserção Social (DRS) da Seap. “Nós já formamos algumas mulheres. Tivemos, ano passado, a formatura. Mulheres encarceradas, mães de baixa renda, que nunca sonharam em ter um nível superior e, com esse projeto, estão conseguindo. Isso mostra para elas que, fora do cárcere, elas têm uma chance enorme”, sustenta.
Educação abre novos horizontes
Patrícia avalia que o projeto abre um leque de possibilidades para as pessoas e permite “alcançar uma nova luz, uma nova esperança, ter um nível superior”, diz. “A vida continua. E através da educação, elas conseguem, sim, mudar a história da vida delas, e ter um nível superior. Quando saírem do cárcere com o diploma, será mais fácil elas conseguirem se enquadrar na sociedade, em busca de novos horizontes, um futuro melhor para elas e para os seus filhos através da educação”, aposta a coordenadora.
As participantes do Projeto Novas Histórias vem se tornando exemplos para os filhos e à família. “Elas mostram que dentro do cárcere conseguiram ter um nível superior. Eu tenho certeza que, com isso, elas vão ter mais chances fora do cárcere de continuar além da graduação, fazer uma pós-graduação, e alcançar empregos melhores para conseguir dignamente sustentar suas famílias”, vislumbra Patrícia Sales.
A pedagoga da UCRF, Natali Benassuly, que atua desde o início do projeto, relata que, em quatro anos, a iniciativa contemplou tanto mulheres que se encontravam no regime fechado como no semiaberto. As oportunidades oferecidas são para cursos como Pedagogia, Licenciatura em Letras, em Português, Design de Interiores e em Ciências Contábeis.
Com a seleção de 10 custodiadas universitárias para receberem as 10 bolsas integrais, as beneficiárias escolheram seus cursos e iniciaram a capacitação. Em 2024, duas delas foram as primeiras concluintes do projeto, mesmo ainda figurando na condição de internas da UCRF, explica a professora Natali Benassuly. Leilane Barbosa Salles e Rosa Cravo se formaram em Design de Interiores e Licenciatura em Letras, respectivamente.
Projeto incentiva retomada dos estudos e emancipação feminina
A professora Natali Benassuly frisa: “Esse projeto é de suma importância, porque foi um projeto piloto, quando ofereceu o curso de graduação para as PPLs. Muitas vezes, elas não tiveram essa oportunidade na liberdade. Muitas delas foram as primeiras universitárias da família. E por elas estarem cursando, o projeto também impulsionou as outras PPLs a fazerem o ensino médio através da Seduc”.
Cleudiane Moura é uma das custodiadas que aderiu ao projeto. Ela terminou a formação em Licenciatura em Letras, e nos próximos dias receberá o diploma. Outras cinco internas seguem estudando, e as que já deixaram a unidade por terem progredido de regime, também continuam os estudos para concluírem os cursos.
Natali Benassuly observa: "A gente consegue emancipar essas mulheres através da educação e fazer com que elas não reincidam no crime. Temos estatísticas através de artigos científicos, dissertações de mestrados e teses de doutorados que mostram que as PPLs que estudam não reincidem no crime. É interessante, para mim, como pedagoga na unidade de custódia, ter esse feedback de ver um familiar numa formatura feliz, sabendo que elas estão recebendo um certificado, que elas têm uma profissão”, comemora a professora.
Exemplos de resistência e determinação
Formada em Pedagogia antes de chegar na UCRF, Cleudiane Moura contou que ao saber da possibilidade de voltar aos estudos, não pensou duas vezes e abraçou a oportunidade. “Para mim, foi um privilégio estar dentro desse lugar e ter uma bolsa de estudo, uma graduação. Muitas pessoas que estão na liberdade não têm essa oportunidade que nós temos aqui dentro do cárcere. Então, a palavra é gratidão, porque eu acredito que a educação transforma o ser humano, e nós estamos tendo essa oportunidade”, afirma Cleudiane.
Ela conta que a opção pelos estudos também reflete diretamente nos dois filhos. Um deles já é formado em Engenharia Civil e outro está finalizando o curso de Educação Física na Universidade do Estado do Pará (Uepa). “Eles se espelham em mim. E, todas as vezes que eu tenho oportunidade de receber visita ou receber recados, eles mandam dizer que eu sou o orgulho deles, e mesmo eu estando nessa situação, consigo ser resiliente, consigo buscar forças, estou estudando, estou trabalhando. E está bem próximo à minha volta para casa”, afirmou Cleudiane.
Leilane Barbosa Sales se formou no ano passado em Design de Interiores, juntamente com outra interna da UCRF, Rosa Cravo, pelo projeto Novas Histórias. Em razão da pena, Leilane segue custodiada, mas agora tem uma segunda graduação, pois ela já era pedagoga antes de chegar na UCRF.
'Estou conseguindo apoio de pessoas profissionais', reconhece custodiada
A mãe de Leilane, contou a custodiada, se surpreendeu ao saber que a filha faria parte do projeto. “Ela disse: filha, eu não estou entendendo. Você está passando por um sofrimento desse e está feliz? Eu falei: estou. Ela disse: por quê? Eu falei: mãe, independente do lugar que eu esteja, estou conseguindo apoio, estou conseguindo forças de pessoas profissionais, e que tem a capacitação para dar continuidade no trabalho aqui dentro, organizando o nosso dia a dia, nos incentivando a estudar e a trabalhar”, conta Leilane.
O incentivo para seguir com os estudos também estava nas filhas Bianca e Beatriz, disse Leilane. Embora a realidade do cárcere não seja fácil, Leilane assegura que a dor maior é a saudade, e mergulhar nos estudos é a forma de descobrir que a vida segue e é possível sonhar com dias melhores mesmo dentro do sistema prisional.
“Eu me senti assistida e amparada por essa equipe aqui dentro. E com isso, eu estou estudando. Então, minha vida não parou. Eu não tenho por que chorar. Eu estou sofrendo por conta da saudade. Mas eu estou feliz, porque a minha vida não parou. Estou estudando e estou feliz com isso, porque eu vou poder dar continuidade nos meus sonhos. Eu sempre tive o sonho de estudar, de fazer meus cursos, tudinho”, destaca Leilane.
Leilane acrescenta que seguir no caminho acadêmico vai lhe conferir uma bagagem cultural, um aprendizado melhor, e permitir passar suas experiências para as filhas, inclusive nos estudos. “Minha mãe me disse que elas falaram: a minha mãe é um orgulho. Eu fiquei feliz com isso. Isso me alimenta aqui dentro, me fortalece, porque, mesmo eu sendo uma mulher dentro do sistema carcerário, continuo sendo uma mãe, e eu sou um orgulho para meus filhos e para minha família”, concluiu.
Rosa Cravo, a outra interna que concluiu a formação, já se encontra no regime semiaberto, trabalha e está no benefício da saída temporária. Na ocasião de sua formatura, declarou: “Tem que levar realmente a sério, se dedicar com afinco, toda dedicação, porque não é fácil estudar lá fora, e aqui dentro, mais difícil ainda. Mas, a cada dificuldade enfrentada, é um desejo vencer aquele desafio".
"Então, eu falo para as pessoas: se você tem um sonho, lute. Não desista, porque só depende de você para que esse sonho, esse objetivo seja alcançado. Estude para quem está lá fora. Para quem está aqui dentro mesmo, estude. A educação é a melhor forma de se libertar. E hoje, posso dizer que estudar no cárcere é difícil, mas é gratificante um momento como este”, disse Rosa Cravo por ocasião da formatura.
Atualmente, outras 60 mulheres da UCRF concluíram o Ensino Médio e se preparam para o Exame Nacional do Ensino Médio para Pessoas Privadas de Liberdade (Enem PPL), a versão do Enem aplicada em unidades prisionais e socioeducativas. Em geral, elas também querem seguir o exemplo das colegas custodiadas e começar a escrever uma nova história na vida.
Texto de Márcio Souza / Ascom Seap